quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Cá choro


Vivo a fábula de cachorros que correm e falam. E choram quando comento das guerras, do comércio e da vida. Da falta dela. O modelo atual de vida já não comporta os seus adeptos. Ou são os adeptos que não se enquadram em padrões, apenas na busca deles.

O criador regido pela própria criatura. Homem e Mercado. Sua imagem e semelhança. Hierarquia, ganância, caos interior. Criatura de garras e leis. E vontade própria. O Mercado simplificou a vida em valores de troca. Valores quantitativos. Especulação. Mais valia. Segregação. Miséria legitimada. Sofrimento necessário. Igualdade na inconstância, em um horizonte turvo.

Difícil é viver uma vida de cachorro. Sofrer maus tratos dos humanos. Ser abandonado como algo sem valor. Que perdeu o seu valor quando adulto. Não é mais filhote, pode sobreviver sozinho. Então, passam a viver aventuras, explorar cenários novos, desafiar o ambiente tumultuado das cidades. Espirito desregrado e aventureiro. Dos cachorros. Os humanos preferem viver em jaulas de condomínios, em grades de presídios, em desejos aprisionados, em sentimentos subversivos reprimidos. São prisioneiros de grades de programação televisiva por medo de sair de casa. Uma passividade camuflada pelo conforto doméstico. Ser humano é ter medo. Ser cachorro é não ter medo de escondê-lo.

Para os cachorros, nada se iguala a uma boa vitrine, a um frango assado rodando suculento no espeto. Saliva desejo e degusta a imaginação. Como o sabor é bom. Cachorros não sonham com caviar. Caviar tem gosto de hierarquia e segregação. De títulos de nobreza. Um sabor amargo que os humanos apreciam.

Os cachorros não crucificaram um Poodle. Crucificariam um frango suculento, como dito a pouco, é certo. Porém, por genuína necessidade de alimentar-se. Os humanos crucificaram um homem, com lindas madeixas de Poodle, olhos azuis, pele branca. Ele não tinha pêlos de Buldog. Era cão de raça. Tosado e sacramentado. E, hoje, os Homens vislumbram a cruz em um sentimento de autopiedade. Com misericórdia da própria complacência com o ódio.

Semáforos, vias sinalizadas, imprudência. Morte cotidiana. Luxo, ostentação, miséria. Morte natural. Guerras, tiros, cadáveres. Morte em combate, morte legitimada. Sem mortes nunca haveria um vencedor. Um singelo sentimento de vitória basta. A dor alimenta a espécie humana.

Ah, se vivêssemos uma vida de cachorro.

PS: Imagem de Scotty Reifsnyder - Don Peris Holiday Concert poster

2 comentários:

  1. Adorei.

    A pontuação e a construção de frases são muito peculiares e nos transportam a um universo maravilhosamente subversivo.

    Coisas de poeta. Uma mensagem contemporânea. Muito em sintonia com os colunistas da Caros Amigos, César Cardoso e Ulisses Tavares.

    Sonho com o mundo cão.

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  2. O texto é a cara do autor (quem o conhece sabe bem do que estou falando). O jogo de palavras e as comparações dão mesmo um estilo único e original ao texto.

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